Vício de linguagem que simula a formalidade e evita compromisso com a palavra dada, o gerundismo joga luz sobre o artificialismo nas relações sociais
Ele chegou furtivo, espalhou-se feito gripe e virou uma compulsão nacional. Nas filas de banco, em reuniões de empresas, ao telefone, nas conversas formais, em e-mails e até nas salas de aula, há sempre alguém que “vai estar passando” o nosso recado, “vai estar analisando” nosso pedido ou “vai poder estar procurando” a chave do carro. É fenômeno democrático, sem distinção de classe, profissão, sexo ou idade. O gerundismo já foi alvo de tantos e calorosos debates, que mesmo a polêmica em torno dele pode estar virando uma espécie de esporte de horas vagas, quase uma comichão a que poucos parecem indiferentes. Embora não haja explicação única para a origem do fenômeno, sua popularidade chama a atenção não só de especialistas da língua, mas de empresários e ouvidos sensíveis a saraivadas repetidas do mesmo vício. Principalmente porque, por trás da aparente certeza sintática, podemos estar diante de um fenômeno com implicações semânticas e pragmáticas – seu sentido, alargado ao dia-a-dia, pode dizer algo sobre a própria cultura brasileira, nem sempre lembrada quando se discute o assunto.
O uso repetitivo do gerúndio tem nome próprio: encorreia. A palavra é parente da diarreia. Mas a vítima do gerundismo não é o gerúndio isolado, in natura, é a estrutura “vou estar + gerúndio”, uma perífrase (locução com duas ou três palavras). Em si, a locução “vou estar + gerúndio” é legítima quando comunica a ideia de uma ação que ocorre no momento de outra. A sentença “vou estar dormindo na hora da missa” é adequada ao sistema da língua, assim como quando há verbos que indiquem ação ou processo duradouros e contínuos: “amanhã vai estar nevando” ou “sexta vou estar trabalhando o dia todo”, por exemplo.
Aquilo que se deu o nome de gerundismo se dá quando nós não queremos comunicar essa ideia de eventos ou ações simultâneas, mas antes falar de uma ação específica, pontual, em que a duração não é a preocupação dominante. A coisa piora mesmo quando a ideia de continuidade nem deveria existir na frase. “Vou falar” narra algo que vai ocorrer a partir de agora. “Vou estar falando” se refere a um futuro em andamento – “estar” dá ideia de permanência no tempo. Nesses casos, o gerúndio é usado em situações mais adequadas ao uso do infinitivo (aquele que não dá ideia de ação em curso, mas de assertiva).
É forçado falar de uma ação isolada, que se concluiria num ato, como se fosse contínua.
Há um paradoxo semântico porque se dá a impressão de que a ação prometida é duradoura. Ao adotar o gerúndio numa construção que não o pedia, a pessoa finge indicar uma ação futura com precisão, quando na verdade não o faz. O gerundismo faz a informação pontual (em que o foco está na ação) ser transformada numa situação em curso (durativa). O aspecto pontual é aquele em que um fenômeno é flagrado independentemente da passagem de tempo – o verbo se refere só à ação. São pontuais, por exemplo, expressões como “vou fazer” ou o futuro do presente, “farei”.
Porque os mecanismos linguísticos são acionados pela intenção é possível obter um efeito pragmático na locução do gerúndio de atenuar o compromisso com a palavra dada. Quando digo “vou passar seu recado”, a referência é a ação em si. Não me atenho à sua duração. Com isso, amarro um compromisso. A ação é indicada ali, pura e simplesmente. Garanto que ela se cumprirá. Ao usar o gerúndio, deixo de me referir puramente à ação e incorpora-se o aspecto verbal durativo. A ênfase passa a ser outra. Você comunica que até encontrará tempo para fazer a ação, mas seu foco não está mais nela.
O descompromisso que essa atitude implica pode ser atribuído a uma duração que é falsa. Permite, por tabela, que qualquer um drible seu interlocutor, sem parecer indelicado. O gerundismo se propagou como traço de quem se ocupa em encontrar formas de polidez para relacionar-se. Como não tem versatilidade de uso da língua, essa pessoa aposta na fórmula ritualizada, na presunção de que aquilo é uma gentileza chique. No fundo, é um desperdício de gerúndio. O apelo a esse expediente é similar àquilo que se convencionou chamar de hipercorreção – a escolha de uma forma de expressão incorreta no lugar da correta por considerar que a incorreção seja mais elegante e menos vulgar.
O fato é que se trata de uma expressão que não circula na língua culta escrita e, mesmo na língua popular, ela não circula com espontaneidade. Parece ser mais uma forma artificial e planejada.
As frases com gerundismo proliferaram em ambientes formais antes de tomar as ruas. Ninguém diz “vamos estar tomando uma cervejinha”. O emprego abusivo do gerúndio é próprio das situações formais. A pessoa, por vezes, evita dizer de forma direta que vai resolver uma questão no momento e, ao mesmo tempo, parece não querer estabelecer uma data para fazê-lo. Talvez ela se veja apenas como peça de uma engrenagem burocrática e, portanto, desprovida do poder de tomar decisões. Precisa, na prática, de uma espécie de fórmula que lhe permita dizer algo educado, mas que não implique real compromisso. E o gerundismo parece atender a essa demanda.
A propagação do uso vicioso do gerúndio seria, assim, típica dos centros urbanos, em que as relações humanas são marcadas por escalas rígidas de hierarquia, ferramentas mais impessoais de comunicação (telefones e e-mails) e intermediários entre quem deseja a comunicação e quem não a deseja na mesma intensidade.
O gerundismo parece ter ficado popular pela facilidade com que confere imprecisão a informações que exigiriam solidez. O que está em jogo pode ser a própria concepção de certeza num diálogo.
O presente, “escrevo”, nos dá certeza. “Escreverei”, o futuro, pode ocorrer ou não. Já na construção “vou estar escrevendo” acrescenta-se a ideia de promessa, de não compromisso. O gerundismo marca a oposição entre promessa e esperança. A associação entre formalidade ritual e falta de compromisso, usada à exaustão, virou bomba-relógio comunicativa que preocupa executivos e diretores de recursos humanos.
Vício não prolifera sozinho, mas motivado pelas situações de trabalho e do cotidiano. Ao informar que vamos estar fazendo, nós não dizemos quando vamos concluir o processo, mas que ele está em andamento. Ao ouvir um “vamos estar resolvendo o seu problema”, não sabemos quem vai resolver, nem se vai fazê-lo. Na prática, comunica- se que está trabalhando, mas não trabalha.
Na lógica empresarial de Adonis, aquele que nos atende por meio de gerundismo parece sentir que “atender” não é o que ele “faz” mas o que “está fazendo”. Por não vestir inteiramente a camisa numa profissão que considera instável, apela para o gerúndio para não se comprometer com ações futuras. No fundo, o problema gramatical camuflaria um mau serviço.
O gerundismo é sina da dificuldade das pessoas de ir a fundo nas questões relevantes. Combater o gerundismo por purismo é ir contra a riqueza da língua. Sua força e franqueza não estão em si mesmas, mas na fragilidade do diálogo. A superficialidade de não está em quem usa, mas em quem aceita respostas imprecisas. Como não conversamos profundamente, fica tudo por isso mesmo. A estrutura viciada do gerúndio é tributada ao Brasil. Os portugueses não usam muito. Preferem ao gerúndio o infinitivo com a preposição “a” (“Estou a fazer o tratamento”).
Com uma cultura urbana formada por pessoas sempre em muito movimento e estimularia, no limite, uma falha ética nas relações humanas. A falta de compromissos contida na locução viciosa seria a expressão de um vazio ético. Se não for mudada a relação de compromisso entre pessoas e entre empresas e clientes, é possível que o gerundismo se torne mais regular do que já é. As pessoas garantem que “vão estar providenciando”, mas não providenciam, e isso é terreno fértil para a expressão fortalecer-se.
A submissão a uma forma fixa não se corrige setorialmente. Ela é sintoma da falta de variedade de recursos de expressão. Quem tem diversidade não recorre à mesma expressão o tempo inteiro. O mal estar que o vício provoca pode estar associado à percepção desse esvaziamento da comunicação nas relações mais burocratizadas. Talvez o que irrite seja o vazio em que caímos quando ouvimos essas construções. São fórmulas que não nos dão garantia de nada.








