Por Érico Assis
Ingredientes necessários:
- Cópia impressa da HQ; no caso, Wilson, do Dan Clowes;
- Um personagem principal falastrão e nada a ver com você, tradutor;
- Uma esposa entediada em licença-maternidade;
- Um amigo com dose apropriada de cinismo para interpretar falas e personalidade do personagem principal.
Primeiro, traduza o livro. É fácil: é só transformar as palavrinhas em inglês em palavrinhas em português.
E tentar garantir que as frases soem bem em português. E mudar a ordem das frases, ou uní-las, para soarem melhor. E procurar sinônimos quando aquela sua primeira opção de palavrinha traduzida não parece equivaler à frequência de uso da palavrinha original. E entrar em desespero quando você sabe que existe uma palavrinha (ou expressão) melhor para aquilo em português, e você não sabe em que parte do seu cérebro está, mas sabe que está lá, e nenhum dicionário (de tradução, de inglês, de sinônimos, analógico) ajuda. E deixar essas palavrinhas difíceis para trás, com um highlight acusatório da sua memória deficiente, torcendo para que a opção mais apropriada surja depois de uma ou duas noites de sono, ou antes do deadline chegar. E, durante o processo, ler algum outro livro com personagens ou temas similares, preferencialmente original em português, para se inspirar.
Objetivo: ter uma versão em português dos diálogos, por mais esboçada que ainda seja. Tempo estimado: mais ou menos um mês, se estiver em meio a outros projetos de tradução.
Depois, aguarde momento máximo de tédio da esposa de licença e chegue com os apetrechos: o livro e um pacote de post-its. Esposa agradece oportunidade de parar de reler O que esperar enquanto você está esperando e de assistir novela. Faz relações entre a proposta do marido e arte contemporânea. Pensa em colar post-its somente sobre os balões de personagens femininas e levar o gibi para uma galeria, onde será interpretado como uma denúncia da sociedade machista. Marido diz arrã, mas que por favor ela coloque post-its sobre todos os balões do gibi, sejam de machos ou fêmeas. São apenas 80 páginas e menos de dez balões por página.
O resultado deve assemelhar-se à foto no topo do post. Tempo necessário: duas noites de tédio da esposa.
Convide o amigo com dose apropriada de cinismo. Explique que está traduzindo livro onde personagem principal é basicamente ele, seu amigo. Mas seja gentil: diga para o amigo que é porque ele tem um “vocabulário interessante”. Resista em dizer que o personagem do livro é este seu amigo, no futuro. Importante: seu amigo não deve ter lido o livro previamente.
Parênteses sobre meu amigo Yusanã Mignoni: quando eu e a Marcela estávamos no auge da gravidez, ele fez a gente ver esta foto. Também ronda os comentários aqui do blog, causando discórdia. É um cinismo divertido, assim como o do Wilson. Mas, diferente do Wilson, ele faz alguma coisa. Na verdade, algumas coisas: escreve, fotografa, compõe. E é uma das melhores pessoas para conversar sobre tudo aqui no reino de Chapecó. Fora ter esse nome sensacional. Em homenagem a ele, chamo este de Método Yusa Para Tradução de Quadrinhos. Fecha parênteses.
Com o livro post-it-zado nas mãos do amigo, comece a ler as frases em voz alta a partir do seu roteiro traduzido, enquanto ele acompanha os quadrinhos com os balões tapados. Leia a página uma vez para ele entender a piada ― Wilson é uma reunião de histórias de uma página, sempre com punchline, que formam uma história maior ―, e outra para ele avaliar se o personagem falaria mesmo daquele jeito. Repita o processo a cada página. Quando achar interessante, peça para ele interpretar o personagem a partir das suas falas traduzidas.
Rende várias alterações no texto. São três os objetivos: eliminar o terceiro código (aquelas traduções ruins, onde parece que você vê o texto original aportuguesado toscamente), fazer o texto fechar com as imagens e evitar que o editor mexa demais no seu trabalho, sob o pretexto de “você acaba percebendo um monte de problemas quando coloca o texto nos balões”. Tempo estimado: três madrugadas. Peça pizzas.
Resultado esperado: diálogos que façam jus, em português, aos criados por Dan Clowes. E ― até que se invente um software para tradução direto nos balões ― um experimento para descobrir a melhor forma de traduzir quadrinhos. Aguardar de seis a dez meses para retorno do editor. E de vocês, leitores.
[Wilson tem lançamento previsto para o começo de 2012.]
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Fonte:
Érico Assis é jornalista, professor universitário e tradutor. Do selo Quadrinhos na Cia., ele já traduziu Retalhos, de Craig Thompson, Umbigo sem fundo, de Dash Shaw, e os três volumes de Scott Pilgrim contra o mundo, de Bryan Lee O’Malley, entre outros. Ele contribui quinzenalmente para o blog com textos sobre histórias em quadrinhos.
http://www.ericoassis.com.br/