Ricardo Piglia no Brasil

29/09/2011

No momento em que chega ao Brasil seu livro mais recente, “Alvo noturno”, o argentino Ricardo Piglia vem ao país falar justamente sobre o lugar da tradução na história da literatura. Nas duas conferências parte das comemorações dos 25 anos da editora Companhia das Letras, (em São Paulo, dia 26, na Livraria Cultura, e no Rio, dia 28, no Instituto Moreira Salles), Piglia apresentou sua teoria de que a essência do romance como forma literária é sua capacidade de se adaptar a diferentes idiomas e culturas.

— O romance é a forma que melhor resiste à tradução e, de certa maneira, ele torna a tradução possível. Mesmo que haja alguma perda na adaptação para outro idioma, o romance tem algo além da linguagem que pode ser transmitido, e isso permite que ele circule pelas culturas e se torne uma forma realmente mundial. Isso é mais difícil com a poesia, por exemplo. Na conferência, vou tentar estabelecer as relações entre a prática da tradução e a história do romance, de sua origem até hoje, e apresentar o romance como forma popular e democrática, precisamente porque pode ser traduzido — diz Piglia em entrevista ao GLOBO, por telefone, de Buenos Aires.

Em “Alvo noturno” (Companhia das Letras, tradução de Heloisa Jahn), Piglia explora essas possibilidades de comunicação oferecidas pela natureza do romance, ao traduzir $convenções do gênero policial, de tradição eminentemente anglo-americana, para o universo argentino. O sucesso da empreitada pode ser medido pelo fato de o livro ter recebido este ano tanto o prêmio Romulo Gallegos, tradicional distinção da literatura em língua espanhola (já concedida a García Márquez, Vargas Llosa, Enrique Vila-Matas, Javier Marías e Roberto Bolaño, entre outros), quanto o prêmio Dashiel Hammet, outorgado anualmente pela As$ção Internacional de Escritores Policiais.

“Alvo noturno” parte da premissa clássica do gênero policial: um assassinato misterioso (do forasteiro Tony Durán, recém-chegado a um vilarejo no pampa argentino) e sua turbulenta investigação (pelo comissário Croce e seu improvisado assistente, o jornalista Emilio Renzi, que vem de Buenos Aires para cobrir o caso). No entanto, o deslocamento da trama para o cenário do pampa permite que Piglia use $convenções do gênero para investigar não apenas o crime, mas também a própria estrutura da sociedade local.

— Os gêneros mais populares, como o policial e a ficção científica, podem ser lidos como os grandes críticos do capitalismo. Eles renovaram a relação entre literatura e política, que esteve sempre muito ligada à tradição do romance social, sobretudo na América Latina. O romance policial, por exemplo, capta muito bem o funcionamento da socieda$, as relações infrapolíticas entre poder, dinheiro, corrupção delito, crime. Ele se aproxima do núcleo de funcionamento de uma sociedade — observa Piglia, que já havia investigado as possibilidades do gênero em textos ensaísticos e ficcionais, principalmente em seus romances mais conhecidos, como “Respiração artificial” e “A cidade ausente”. — Me interessa muito a forma do relato como investigação, algo que o gênero policial elevou ao nível da perfeição — diz.

Conforme a trama de “Alvo noturno” avança, o foco da investigação do relato de Piglia passa da morte de Tony Durán para as complexas ligações entre os habitantes do povoado onde o crime é cometido. Os procedimentos pouco convencionais do comissário Croce (que diz preferir o método “indutivo” ao dedutivo e se interna regularmente no manicômio local para aclarar os pensamentos) desvelam a rede de comprometimentos que une os personagens e que parece convergir para a família Belladona, proprietária de uma fábrica falida, motivo de uma disputa judicial. Recusando-se a aceitar a falência, o filho rebelde da família, Luca, se tranca na fábrica e passa o tempo construindo máquinas feéricas e ditando discursos febris para um secretário.

Professor recentemente aposentado da Universidade de Princeton (EUA), Piglia diz ter empregado no romance a noção de “ficção paranoica”, tema de um de seus cursos. No livro, o termo é usado pelo personagem Emilio Renzi, alter ego que aparece em todos os romances do escritor, para tentar dar conta da impossibilidade de levar a termo a investigação da morte de Tony Durán.

— Um relato policial tende a acabar com o deciframento de um crime, e eu tentei abrir o relato a partir disso, porque me importam mais as consequências do crime do que a solução.

Fonte: O Globo